Charlles Nunes
Aprender é para sempre.
Textos

Memórias de Um Missionário

Charlles Nunes

 

O barulho do liquidificador desperta a casa inteira.

 

Só mais um minuto. O que está girando lá dentro muito me interessa: vitamina de banana. As pedras de gelo se espatifam na hélice fazendo o leite soltar fumacinha. Em instantes, grandes goladas farão um missionário feliz.

 

Pronto. Recipiente transbordando, volto à mesa de estudo. Encho o copo, deixo o restante ao alcance da mão. A Bíblia aberta parece observar o pecado da gula em primeira mão. Estou lendo João 9, sobre a cura de um cego de nascença. No entando, continuo alheio à minha própria cegueira.

 

Sempre me intriga essa história. Sem desmerecer o milagre, imagino Jesus cuspindo no chão, fazendo aquela gosma milagrosa e untando os olhos do cego. (Se a fórmula cai em mãos erradas hoje em dia, imagine a tal ‘milagrosma’ infestando a Internet: ‘Visão garantida ou seu dinheiro de volta!’

 

Mas o que me mais encanta é o fato de Jesus ter parado para ajudar quem tanto precisava dele. Sem culpar o homem ou seus pais pela cegueira, entrou logo em ação...

 

E foi aquele reboliço!

 

Pensativo, encho o segundo copo.

 

Enquanto acompanho o Mestre pelas estradas poeirentas da Palestina, minha barriga anuncia: “Game over.” Típico erro de cálculo: mais olho do que estômago.

 

Olho para o liquidificador e - do alto dos meus 22 anos - nele vejo minha mãe. Mãos na cintura, repetindo pela enésima vez: “Tem vergonha não? Muita gente queria ter esse resto que você tá deixando...” E a conclusão, sempre solene: “Todo alimento tem que passar por algum organismo vivo.”

 

Minha mãe tinha faro de formiga. Detectava travessuras de longe. Quando ficou viúva, passou a contar com o apoio de um fio de luz que botava a gente no eixo. Resto de pão pra passarinho. Resto de comida pro cachorro. E chicote no lombo de quem desobedecesse.

 

Com a Dona Cacilda, não tinha meia conversa. Enquanto um de nós apanhava, o outro  vestia calça sobre calça, pra aliviar a ardência.

 

De tanto ouvir aquela bendita frase, eu imaginava a comida toda satisfeita, fazendo um tour pelo estômago e seguindo radiante para os intestinos. Sempre em busca da luz no fim do túnel!

 

Mesmo pronunciadas a quilômetros de distância, as palavras vinham ricochetear nos azulejos da cozinha. (Como vingança, passei adiante o legado: bastam as palavras ‘todo alimento...’ que meus filhos concluem a frase!)

 

Encarando o copo do liquidificador pela metade, pensei nas alternativas: Jogar aquilo tudo na pia, e mentir pra mãe no retorno pra casa? Nem pensar... Mãe tem sexto sentido. Começo então a procurar um ‘organismo vivo’ disposto a detonar a gororoba.

 

Chamo um companheiro, que está em outro cômodo. “Tô cheio.” Outro, ‘cheio’ também. Depois da terceira tentativa, penso: “Lascou. Como me livrar da prova do

crime?” Estou mais perdido do que visitante que entope o vaso!

 

Enquanto bolo um plano C, ouço pela primeira vez um som atrás da cabeça: “esfrega-esfrega-esfrega”. Dona Zefinha está desde cedo lavando nossas roupas no tanque. Na casa dos cinquenta e, viúva como minha mãe, ela inteira o orçamento trabalhando fora. Suas batatinhas em forma de pequenos cubos fazem o maior sucesso. E como fica feliz em nos servir! Nós a chamamos carinhosamente de ‘tia’.

 

Ofereço-lhe um copo duplo. Ela vira numa golada só. Repito a dose. Ela manda ver, e no final acrescenta sorridente: “Lavar roupa dá uma fome... né, Nunes?”

 

Só então percebo que aquele ‘organismo vivo’ é um ser humano como eu, com emoções e necessidades.

 

Enquanto lia sobre os milagres de Jesus e me imaginava um ‘instrumento nas mãos de Deus’, ‘representante oficial da Igreja’ ou algo que o valha, nem me dei conta que alguém estava suando em bicas pra me servir. E pelo andar da carruagem, ainda em jejum.

 

Continuamos a conversa... Ela me conta que comprou um cordão folheado e que ficou sem dinheiro pra comprar o gás. Eu comento que estou com vergonha do meu corte de cabelo feito por um outro missionário. Rimos juntos das nossas mazelas.

 

Me ofereço pra lavar seu copo. Ela aceita, embaraçada. Aproveito pra lavar o copo do liquidificador também.

 

“-- Dona Cacilda, já pode guardar o fio de luz!”

Charlles Nunes
Enviado por Charlles Nunes em 17/05/2023
Alterado em 11/06/2023
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