Charlles Nunes
Aprender é para sempre.
Textos

O Amigo Que Todo Rapaz Deveria Ter

Charlles Nunes

 

Campo Grande - MS, 22 de Julho de 1994.
Quando se tem vinte e poucos anos, tudo na vida é muito intenso. Comigo não foi diferente...
 
Após um lanche rápido na rodoviária de Campo Grande-MS, entrei no ônibus que me levaria de volta a minha cidade natal, no estado do Rio. Minha mãe acenou e o ônibus partiu. Ao invés da alegria em rever meus parentes após quatro anos e meio, eu sentia um gosto de fracasso na garganta.
 
Eu parecia um fugitivo de mim mesmo.
 
Ou melhor, das circunstâncias que eu já não conseguia controlar. Deixava pra trás um casamento marcado, um terreno que eu havia começado a pagar, e minha carteira de trabalho para dar baixa.
 
Depois de dezesseis horas pensando, desembarquei às dez da noite numa estrada escura. Meu tio estava me esperando com seu valente fusquinha.
 
A bagagem contava um pouco da história. Uma bolsa pequena, com todos os meus pertences. Na verdade, meia bolsa. Na outra metade, meu cobertor laranja.
 
Chegando em casa, a parentada fez festa. Desfiz a bolsa em meio minuto, e fui dormir, pensativo.
 
Nos dias que se seguiram, tive bastante tempo pra pensar em como juntar o quebra-cabeças da minha vida. Engraçado que, apenas dez meses antes, eu tinha desembarcado no aeroporto de Campo Grande-MS, quase como um herói.
 
Havia servido uma missão honrosa no nordeste brasileiro. Dois anos a serviço do próximo, estudando e ensinando o Evangelho de Jesus Cristo. Entrei em centenas de lares, conheci milhares de pessoas e levei uma mensagem de esperança a cada uma delas.
 
Em apenas dez meses de retorno, eu já havia me enrascado mais do que imaginava. Teria que pagar o pato por isso.
 
Nessas circunstâncias, voltei à capela onde havia passado boa parte da juventude. E ali reencontrei meu velho amigo Paulo da Silva Santos.
 
Após ouvir meu relato, ele demonstrou o quanto sentia pelo ocorrido, me deu um forte abraço e acrescentou:
 
"O que é justo, é justo. Você vai ter que pagar cada centavo da sua conta. Mas fica tranquilo. Aqui, o seu barco está em águas amigas. Você não está navegando em águas inimigas."
 
Ele não iria me 'passar a mão na cabeça' em relação aos meus erros. Mas também não iria me crucificar, ou me fazer sentir pior do que eu já estava.
 
Terminamos a conversa com uma oração. Eu tinha certeza que – mais uma vez – ele iria caminhar ao meu lado.
 
E voltei para casa pisando mais firme.
 



Volta Redonda - RJ, 31 de Dezembro de 1984.
Fizemos um jantar especial na igreja. Minha mãe levou uma panelona de arroz. Como não pisávamos na capela há um tempão, o pai do Anselmo tinha ido lá em casa me chamar pra 'fortalecer' o time da igreja. 

Nem jogo era. Maior peladão. Mesmo assim, corri feito louco, e fiz algumas amizades. Ele tinha jogado a isca certa.

Depois da ceia, o Presidente e o Dedimar foram levar algumas pessoas em casa. A família do Dedi foi dormir numa sala. O Valdoir, o Mário Sérgio e eu juntamos cadeiras pra fazer de cama e ficamos na cozinha.

Apagamos as luzes e fomos deitar.

Tempos depois, o Mário se senta na 'cama', e diz - cagando de medo:

"Gente, tem alguém entrando na capela."

O Valdoir e eu - escondendo o cagaço:

"Vamos lá ver quem é."

Nos levantamos, e fomos para o corredor. Vi uma silhueta deslizando pela parede. 

Gelei.

Simulando coragem, perguntei:

"Quem tá aí?"

A sombra foi chegando mais perto, mais perto, e deu um grito:

"Buuu!"

As luzes se acenderam, e os dois malucos riram tanto que chegaram a se sentar no chão.
 
'Seus fedazunhos', pensei.

Mas passado o susto, rimos também. Naquela noite, fiquei pensando:

"Esses dois são doidos? De onde tiraram essa ideia de jerico?"

Mas, pela idade do Presidente – 32 anos – senti que ele queria ser nosso amigo. Ele fazia o que pudesse pra deixar a gente feliz.

Passei trinta e cinco anos chamando meu amigo de 'presidente'. E ele me acompanhou desde que nos conhecemos até seu último mês de vida.

Charlles Nunes
Enviado por Charlles Nunes em 30/01/2023
Alterado em 11/04/2023
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