Deixem Entrar as Borboletas
Charlles Nunes
Fim de semana, entre uma atividade e outra, começo a assoviar distraído. Uma música antiga, do Benito Di Paula: "Sou como a borboleta, tudo o que eu penso é liberdade...”
Paro de repente, concentrado numa tarefa qualquer. Meu filho de 6 anos, chega mais perto e diz: “Pai, canta este pedacinho de novo?”
“Que pedacinho?”
“Esse, da música que você ‘tava’ cantando.”
Como não me lembro da música, assovio qualquer uma. Ele insiste:
"Essa não, pai. A outra, da borboleta.”
Lá vou eu: ‘Não quero viver maltratado, nem exportado desse meu chão...”
Pra minha surpresa, ele continua:
“Minhas asas, minhas armas, não servem pra me defender. As cores da natureza pedem ajuda pra eu sobreviver...”
-- Onde você aprendeu essa música?
-- Na escola. A professora cantou com a gente.
Ele dá um sorriso e vai brincar, tão depressa quanto chegou.
Que maneiro, penso eu. Aprender uma música dessas na escola... deve ser uma escola boa mesmo.
Na nossa cartilha, tinha sempre um vovô vendo uma uva. Eu só não entendia porque ele gostava tanto disso, já que lá em casa uva era coisa tão rara - e durava tão pouco.
Mas na escola do meu filho, as crianças já conhecem os versos do Benito.
Que bom saber que ele convive com gente que canta, que sente, que ama tantos pequeninos de lares diversificados. E que a cada dia faz o melhor de si para educar os filhos dos outros como se fossem deles mesmos.
Quando esta garotada crescer, vão se lembrar das ‘tias’ queridas e suas lições de vida. Quanto estiverem com os hormônios em fúria e talvez acreditem - como nós o fizemos -naquelas propagandas de creme para espinhas, vão olhar pra trás e buscar força nessas raízes.
Talvez se apaixonem uma ou duas vezes por mês e, eufóricos, até cometam alguns versinhos, pensando que ‘desta vez é prá valer.’ Talvez encarem um subemprego, ou uma seqüência deles. Quem sabe farão os mesmos erros e acertos de todos nós, já ‘rodados’ nesta estrada da vida?
Consolador é saber que há vida na sala de aula. Que poderemos um dia nos sentar na grama com nossos alunos e compartilhar pensamentos, sentimentos e recordações, contar uma boa piada ou até torcer pelo Brasil – ainda que seja em época de copa do mundo.
Quando fui alfabetizado, todos tínhamos a cartilha do Davi, Meu Amiguinho. Hoje, ele deve ser um pacato vovô, como tantos que viviam entre as inumeráveis uvas da vovó.
A gente via mais uvas nas nossas cartilhas, do que na nossa vida inteira de moleque do interior!
Ah, Davi. Como eu gostaria que você visse como meu filho aprende hoje. Tem até borboletas na sala de aula!
Mas eu não posso reclamar. Seria injusto com a Tia Laura, a Tia Bonifácio, e tantas outras que fizeram o seu melhor. Cada uma delas deu uma pincelada na tela da nossa vida - os meninos e meninas da década de 70.
Que a nova geração de professores e professoras aprendam com as antigas mestras, e nos ajudem a abrir nossas janelas para o mundo. Ao fazê-lo, que abramos também as janelas da alma. Deixemos entrar as borboletas e, com elas, o sentido real da vida.
Que haja menos cartilhas engessadas, cheias daquelas malditas uvas, e mais ‘tempo pra gente ser mais, muito mais do que grandes amigos’, mas verdadeiros irmãos, pais e filhos, talvez.